Ao fazer pesquisa no google.pt apercebi-me que Fernando Pessoa faria hoje 123 anos se estivesse vivo. A google homenageia assim o Poeta (imagem em baixo), e também por isso vos deixo um dos seus poemas.
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
I cannot wish to be anything.
Aside from that, I have within me all the dreams of the world.
Windows of my room,
The room of one of the world’s millions nobody knows about
(And if they knew about me, what would they know?)
Open onto the mystery of a street continually crossed by people,
To a street inaccessible to any thought,
Real, impossibly real, certain, unknowingly certain,
With the mystery of things beneath the stones and beings,
With death making the walls damp and the hair of men white,
With the Destiny driving the wagon of everything down the road of nothing.
Today I am defeated, as if I knew the truth.
Today I am clear-minded, as if I were about to die
And had no more kinship with things
Than a goodbye, this building and this side of the street becoming
A long row of train cars, departing at the sound of a whistle
Blowing from inside my head,
And a jolt of my nerves and a creak of bones as we go.
Today I am bewildered, as one who wondered and discovered and forgot.
Today I am divided between the loyalty I owe
To the outward reality of the Tobacco shop across the street
And to the inward real feeling that everything is but a dream.
No, I do not believe in myself.
In every mental asylum there are mad deranged people with so many certainties!
I, who do not have any certainties, and more or less right?
No, not even in myself...
In how many garrets and non-garrets of the world
Are not there geniuses dreaming unto themselves?
How many aspirations high and noble and lucid -
Yes, truly high, noble and lucid -
And, who knows, maybe accomplishable,
Will never see the light of the real sun, nor be heard by human ears?
The world is for those born to conquer it
And not for those who dream they can conquer it, even though they may be right.
I have dreamt more than Napoleon accomplished;
I have clasped to my hypothetical heart more humanities than Christ;
I contrived philosophies in secret no Kant has ever wrote.
But I am, and maybe I shall always be, the one in the garret,
Although I don’t live in it;
I shall always be the one who was not born for that;
I shall always be the one who just had qualities;
I shall always be the one who has waited for a gate to open next to a wall without a door
And sang the song of the infinite in a poultry-yard,
And heard the god of God inside a plugged well.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature pour over my ardent head
Its sun; its rain, the wind that finds my hair.
And the rest that may come if it comes, or if it has to come, or if it has not.
Cardiac slaves to the stars,
We conquer the world even before we rise from bed;
But we wake up and it is opaque,
We get up and it is alien,
We go out and it is the whole Earth,
Plus the Solar System and the Milky Way and the Indefinite.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature pour over my ardent head
Its sun; its rain, the wind that finds my hair.
And the rest that may come if it comes, or if it has to come, or if it has not.
Cardiac slaves to the stars,
We conquer the world even before we rise from bed;
But we wake up and it is opaque,
We get up and it is alien,
We go out and it is the whole Earth,
Plus the Solar System and the Milky Way and the Indefinite.
But at least it remains from the sorrow of what I shall never be
The rapid calligraphy of these verses,
Collapsed portico to the Impossible.
But at least I confer upon myself a tearless contempt,
Noble at least in the grand gesture with which
I throw the dirty laundry that is me, in a washing-list, unto the course of things,
And stay home shirtless.
While doing some research on google.pt I realised Fernando Pessoa would be 123 years old today, if he was still alive. Google pays tribute to the portuguese poet (image below), and also for that reason I leave you one of his poems.
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu."
by Fernando Pessoa /Álvaro de Campos
"Tobacco shop
I am nothing
I shall never be anythingI cannot wish to be anything.
Aside from that, I have within me all the dreams of the world.
Windows of my room,
The room of one of the world’s millions nobody knows about
(And if they knew about me, what would they know?)
Open onto the mystery of a street continually crossed by people,
To a street inaccessible to any thought,
Real, impossibly real, certain, unknowingly certain,
With the mystery of things beneath the stones and beings,
With death making the walls damp and the hair of men white,
With the Destiny driving the wagon of everything down the road of nothing.
Today I am defeated, as if I knew the truth.
Today I am clear-minded, as if I were about to die
And had no more kinship with things
Than a goodbye, this building and this side of the street becoming
A long row of train cars, departing at the sound of a whistle
Blowing from inside my head,
And a jolt of my nerves and a creak of bones as we go.
Today I am bewildered, as one who wondered and discovered and forgot.
Today I am divided between the loyalty I owe
To the outward reality of the Tobacco shop across the street
And to the inward real feeling that everything is but a dream.
I failed everything.
Since I had no aims, maybe everything was indeed nothing.
What I was taught,
I climbed out of that, down from the window at the back of the house.
I went to the countryside with grand plans,
But all I found in it was grass and trees,
And when there were people, they were just like the others.
I step back from the window and sit in a chair. What should I think about now?
Since I had no aims, maybe everything was indeed nothing.
What I was taught,
I climbed out of that, down from the window at the back of the house.
I went to the countryside with grand plans,
But all I found in it was grass and trees,
And when there were people, they were just like the others.
I step back from the window and sit in a chair. What should I think about now?
What do I know of what I shall be, I who do not know what I am?
Be what I think I am? But I think of so many things!
And there are so many who think to be the same things - there can't be that many!
Genius? At this moment
A hundred thousand minds dream themselves geniuses like I do,
And history will not register, who knows? not even one,
Not will it remain but manure from so many future conquests.
No, I do not believe in myself.
In every mental asylum there are mad deranged people with so many certainties!
I, who do not have any certainties, and more or less right?
No, not even in myself...
In how many garrets and non-garrets of the world
Are not there geniuses dreaming unto themselves?
How many aspirations high and noble and lucid -
Yes, truly high, noble and lucid -
And, who knows, maybe accomplishable,
Will never see the light of the real sun, nor be heard by human ears?
The world is for those born to conquer it
And not for those who dream they can conquer it, even though they may be right.
I have dreamt more than Napoleon accomplished;
I have clasped to my hypothetical heart more humanities than Christ;
I contrived philosophies in secret no Kant has ever wrote.
But I am, and maybe I shall always be, the one in the garret,
Although I don’t live in it;
I shall always be the one who was not born for that;
I shall always be the one who just had qualities;
I shall always be the one who has waited for a gate to open next to a wall without a door
And sang the song of the infinite in a poultry-yard,
And heard the god of God inside a plugged well.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature pour over my ardent head
Its sun; its rain, the wind that finds my hair.
And the rest that may come if it comes, or if it has to come, or if it has not.
Cardiac slaves to the stars,
We conquer the world even before we rise from bed;
But we wake up and it is opaque,
We get up and it is alien,
We go out and it is the whole Earth,
Plus the Solar System and the Milky Way and the Indefinite.
Believe in myself? No, nor in anything.
May Nature pour over my ardent head
Its sun; its rain, the wind that finds my hair.
And the rest that may come if it comes, or if it has to come, or if it has not.
Cardiac slaves to the stars,
We conquer the world even before we rise from bed;
But we wake up and it is opaque,
We get up and it is alien,
We go out and it is the whole Earth,
Plus the Solar System and the Milky Way and the Indefinite.
But at least it remains from the sorrow of what I shall never be
The rapid calligraphy of these verses,
Collapsed portico to the Impossible.
But at least I confer upon myself a tearless contempt,
Noble at least in the grand gesture with which
I throw the dirty laundry that is me, in a washing-list, unto the course of things,
And stay home shirtless.
(You who comfort, who do not exist and therefore comfort,
Either Greek godess, conceived as a living statue,
Or else Roman patrician, impossibly noble and baneful,
Or princess sung by troubadours, most charming and colourful,
Or eighteenth century marquise, décolletée and distant,
Or celebrated courtesan from the time of our parents,
Or modern whatever- I don’t really know what-
All that, whatever you may be, inspire if you can!
My heart is a bucket that was emptied.
As those who invoke spirits, summon spirits I summon
Myself and find nothing.
I go to the window and see the street with absolute sharpness.
I see the shops, I see the street-walks, I see the passing cars,
I see the clothed living beings who cross each other,
I see the dogs which also exist,
And all this weighs on me as a sentence of exile,
And all this is alien, as is everything
I lived, studied, loved and even believed,
And today, there is no beggar I do not envy simply because he is not me.
I consider in each one the rags and the sores and the lie,
And I muse: maybe you never lived, or studied, or loved, or believed
(because it is possible to construct the reality of it all without actually doing any of that);
Maybe you merely existed, like a lizard to which the tail is cut off
And which is tail a-twisting this side of the lizard.
I made of myself what I did not know how,
And what I could have made of myself I failed to do.
The domino costume that I wore was all wrong
And I was immediately recognized as someone I was not and I did not deny it, and was lost.
When I tried to take off the mask,
It was stuck to my face.
When I took it off and looked myself in the mirror,
I had already grown old.
I was drunk, and I no longer knew how to put on the costume that I had not taken off.
I threw the mask away and slept in the dressing room
Like a dog tolerated by the management
Because it is harmless.
And I am going to write this story to prove that I am sublime. .
Musical essence of my useless verses,
If only I could face you as something I had made
Instead of always facing the Tobacco Shop across the street,
Treading at my feet the consciousness of existing,
Like a rug a drunkard stumbles on
Or a doormat stolen by gypsies and not worth a thing.
But the Tobacco Shop owner has come to the door and is standing there.
I look at him with the discomfort of an half-turned head
Compounded by the discomfort of an half-grasping soul.
He shall die and I shall die.
He shall leave his signboard and I shall leave my poems.
His sign will also eventually die, and so will my poems.
Eventually the street where the sign was will die,
And so will the language in which the poems were written.
Then the whirling planet where all of this happened will die.
On other satellites of other systems some semblance of people
Will go on making things like poems and living under things like signs,
Always one thing facing the other,
Always one thing as useless as the other,
Always the impossible as stupid as reality,
Always the mystery of the bottom as true as the shadow of mystery of the top.
Always this thing or always some other, or neither one nor the other.
Either Greek godess, conceived as a living statue,
Or else Roman patrician, impossibly noble and baneful,
Or princess sung by troubadours, most charming and colourful,
Or eighteenth century marquise, décolletée and distant,
Or celebrated courtesan from the time of our parents,
Or modern whatever- I don’t really know what-
All that, whatever you may be, inspire if you can!
My heart is a bucket that was emptied.
As those who invoke spirits, summon spirits I summon
Myself and find nothing.
I go to the window and see the street with absolute sharpness.
I see the shops, I see the street-walks, I see the passing cars,
I see the clothed living beings who cross each other,
I see the dogs which also exist,
And all this weighs on me as a sentence of exile,
And all this is alien, as is everything
I lived, studied, loved and even believed,
And today, there is no beggar I do not envy simply because he is not me.
I consider in each one the rags and the sores and the lie,
And I muse: maybe you never lived, or studied, or loved, or believed
(because it is possible to construct the reality of it all without actually doing any of that);
Maybe you merely existed, like a lizard to which the tail is cut off
And which is tail a-twisting this side of the lizard.
I made of myself what I did not know how,
And what I could have made of myself I failed to do.
The domino costume that I wore was all wrong
And I was immediately recognized as someone I was not and I did not deny it, and was lost.
When I tried to take off the mask,
It was stuck to my face.
When I took it off and looked myself in the mirror,
I had already grown old.
I was drunk, and I no longer knew how to put on the costume that I had not taken off.
I threw the mask away and slept in the dressing room
Like a dog tolerated by the management
Because it is harmless.
And I am going to write this story to prove that I am sublime. .
Musical essence of my useless verses,
If only I could face you as something I had made
Instead of always facing the Tobacco Shop across the street,
Treading at my feet the consciousness of existing,
Like a rug a drunkard stumbles on
Or a doormat stolen by gypsies and not worth a thing.
But the Tobacco Shop owner has come to the door and is standing there.
I look at him with the discomfort of an half-turned head
Compounded by the discomfort of an half-grasping soul.
He shall die and I shall die.
He shall leave his signboard and I shall leave my poems.
His sign will also eventually die, and so will my poems.
Eventually the street where the sign was will die,
And so will the language in which the poems were written.
Then the whirling planet where all of this happened will die.
On other satellites of other systems some semblance of people
Will go on making things like poems and living under things like signs,
Always one thing facing the other,
Always one thing as useless as the other,
Always the impossible as stupid as reality,
Always the mystery of the bottom as true as the shadow of mystery of the top.
Always this thing or always some other, or neither one nor the other.
But a man has entered the Tobacco Shop (to buy tobacco?),
And plausible reality suddenly hits me.
I half rise to my feet -energetic, sure of myself, human-
And I will try to write these verses in which I say the opposite.
I light up a cigarette as I think about writing them,
And in that cigarette I savor a freedom from all thoughts.
I follow the smoke as if it were my own trail,
And enjoy, for a sensitive and adequate moment
The liberation from all speculation
And the awareness that metaphysics is a consequence of not feeling well.
Afterwards I lean back in the chair
And keep smoking.
As long as Destiny allows, I will keep smoking.
(If I married my washwoman's daughter
I might conceivably be happy.)
Given this, I rise and go to the window.
The man has come out of the Tobacco Shop (putting change into his pocket?).
Ah, I know him: he is Esteves without methaphysics.
(The Tobacco Shop owner has come to the door.)
As if by a divine instinct, Esteves turned around and saw me.
He waved hello, I shouted back "Hello there, Esteves!" and the universe
Reconstructed itself to me, without ideals or hope, and the owner of the Tobacco Shop smiled."
And plausible reality suddenly hits me.
I half rise to my feet -energetic, sure of myself, human-
And I will try to write these verses in which I say the opposite.
I light up a cigarette as I think about writing them,
And in that cigarette I savor a freedom from all thoughts.
I follow the smoke as if it were my own trail,
And enjoy, for a sensitive and adequate moment
The liberation from all speculation
And the awareness that metaphysics is a consequence of not feeling well.
Afterwards I lean back in the chair
And keep smoking.
As long as Destiny allows, I will keep smoking.
(If I married my washwoman's daughter
I might conceivably be happy.)
Given this, I rise and go to the window.
The man has come out of the Tobacco Shop (putting change into his pocket?).
Ah, I know him: he is Esteves without methaphysics.
(The Tobacco Shop owner has come to the door.)
As if by a divine instinct, Esteves turned around and saw me.
He waved hello, I shouted back "Hello there, Esteves!" and the universe
Reconstructed itself to me, without ideals or hope, and the owner of the Tobacco Shop smiled."
by Fernando Pessoa /Álvaro de Campos
(Note: There are a couple of different translations of this poem but although they are good they may still not do the poem justice.)
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